segunda-feira, 2 de maio de 2011

O que se revela quando se diz...
Eduardo Calbucci
A  língua,  na  maioria  das  vezes,  oferece-nos  várias  possibilidades  para  dizer praticamente as mesmas coisas. Escolher a forma mais adequada para cada situação, cotejar usos,  comparar  registros,  sempre  tendo  em  mente  a  riqueza  dos  processos  de  variação lingüística,  é  (ou  deveria  ser)  preocupação  de  todos  os  falantes,  sob  o  risco  de  a intercompreensão e a eficiência de comunicação se perderem. 
O “ultrapassado” – ao menos em grande parte do universo acadêmico – discurso do certo X errado, fundamentado numa dicotomia tão rígida quanto equivocada, desconsidera que a língua, como sistema que é, merece ser tomada mais como um objeto de estudo do  que como um pretexto para normatizações frágeis e, muitas vezes, preconceituosas. Por exemplo: quando, no começo dos anos 50, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira  compuseram um dos maiores sucessos da música popular brasileira de todos os tempos, o baião “Asa branca”, alguns puristas podem ter ficado incomodados com o final da quarta  estrofe  da  canção: “Espero  a  chuva  cair  de  novo / Pra  mim voltá  pro meu  sertão”  [grifo nosso]. Afinal, o uso do pronome oblíquo “mim” na posição de sujeito vai de encontro às prescrições  dos  normativistas,  que  apregoam  o  emprego  do  pronome  reto  (eu)  numa  construção como essa.
As  explicações  sintáticas  para  essa  prescrição  vão  das  mais  finas  (os  pronomes pessoais  em  português  mantêm  resquícios  da  flexão  de  caso  do  latim  e,  por  isso,  são grafados  diferentemente  de  acordo  com  sua  função  sintática)  às  mais  insólitas  (todos  já ouvimos o descabido “mim não faz nada” ou o politicamente incorreto e descabido “mim é índio”). O fato é que, por mais que haja quem condene o “mim” como sujeito, esse uso não se deixou abalar e continua afirmando sua existência nas ruas. Manuel Bandeira chegou mesmo a dizer que não havia nada mais “gostoso” do que usar  o  mim como  sujeito  de  verbo  no  infinito.  Para  ele,  a  expressão  “pra  mim  brincar” deveria  ser  usada  por  todos  os  brasileiros.  Em  que  pese  sua  filiação  modernista,  que  o  levava  o  prestigiar  as  variantes  populares  da  língua,  até  mesmo  como  reação  aosbeletrismos de parte da literatura brasileira da virada do século XIX para o século XX, é de elogiar  sua  percepção  aguçada  de  fenômenos  de  língua,  que  o  faz  privilegiar  a espontaneidade em detrimento da “correção”.
A tese de Bandeira é plenamente adequada para explicar o  uso  dos  pronomes em “Asa branca”. Na canção, o emprego de “eu” no lugar de “mim” tornaria o texto incoerente.  O narrador de “Asa branca” é um retirante que foge da seca. Assim, para aumentar o efeito de “verdade” do texto, optou-se por uma variedade linguística compatível com o universo social desse narrador. Linguistas  de  todas  as  épocas  reconhecem  que,  quando  falamos  ou  escrevemos, dizemos mais do que imaginamos. Na verdade,  revelamos de onde somos, em que época vivemos,  qual  o  nosso  universo  social,  como  queremos  nos  relacionar  com  nossos interlocutores.  Isso  se  dá  porque  a  língua  não  é  neutra;  ela  encerra  valores,  crenças, ideologias. É por esse motivo que uma simples escolha lexical pode ter mais peso do que supúnhamos. Veja-se  o  caso  dos  vocativos.  Ao  referimo-nos  aos  nossos  interlocutores,interpelando-os  diretamente,  podemos  empregar  as  mais  variadas  formas  de  tratamento:  doutor, senhor, moço, amigo, companheiro, camarada, rapaz, parceiro, mano, gajo, meu irmão,  guri,  quase  todas  com  suas  respectivas  flexões  femininas.  Os  exemplos  são infindáveis. Acontece que cada forma de tratamento revela muito mais do que se imagina: um “doutor” numa conversa cotidiana pode ser irônico; um “gajo” numa aula de literatura, uma homenagem a Portugal; um “mano” no Rio de Janeiro, uma brincadeira com o falar de  São Paulo; um “camarada” num encontro partidário, uma filiação ideológica. Nada é neutro. Daí, o aforismo de Wittgenstein: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Quanto maior é a consciência dos falantes sobre essas questões, maior é sua capacidade de controlar, ainda que parcialmente, o que se revela quando se diz..

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